O amor tem limites

Quem nunca foi o melhor dos brinquedos para os seus pais dificilmente brincará com os filhos, como tantas vezes acontece, quando for avô. Terá vivido preso às suas experiências magoadas e desperdiçado o que de saudável uma criança interpelante poderia ter tido dentro de si.

1. Algumas pessoas afirmam, com um orgulho indisfarçável, terem uma criança dentro de si (relacionando-a com uma aragem jovial que colocarão em muitos momentos da sua vida). Mas eu acho que estão enganadas. 
Em primeiro lugar, esse lado infantil não corresponde às crianças que foram mas aquelas que desejavam ter sido. É uma forma de justificarem o tom, às vezes, desinibido, às vezes, eufórico que colocam em muitos dos seus actos, dando a entender que se limitarão a ser iguais a elas (como se as crianças não fossem nem leais, nem elegantes e delicadas nos gestos que têm com as pessoas de quem gostam). 
Em segundo lugar, brincar ou rir não são características das crianças mas de quem está mais ou menos em paz com a sua vida. Por outras palavras, sempre que uma pessoa não brinca não é adulta: está doente.
Em terceiro lugar, e mais importante, não há uma criança nalguns adultos estando omissa dentro de outros. Há em todos nós a criança que fomos (ou, se preferirem, que somos) uma vez que os episódios da nossa infância vivem, para sempre, connosco. Alguns, abrem avenidas novas no nosso crescimento. Outros, atropelam-nos (de surpresa) condicionando e limitando a nossa relação com a vida, com o amor, com os sonhos ou com tudo aquilo que sentimos. Serão pequenas feridas da infância que nunca foram contrabalançadas por aventuras divertidas, por viagens inesquecíveis ou por experiências mágicas (onde, por exemplo, antes de configurarmos uma dúvida, um dos nossos pais terá inventado a sua solução). 
O que não teriam precisado de conquistar tantas crianças (hoje já pais) para terem conseguido cicatrizar descuidos, desamparos, decepções e desinteresses que viveram! Não, não é a falta de tempo que impede os pais de serem brincadores mas nunca terem tido quem lhes mostrasse que o melhor dos brinquedos são as pessoas, quando brincam. Acontece que a infância da maioria dos pais não foi uma experiência feliz. E isso faz diferença. Porque quem nunca foi o melhor dos brinquedos para os seus pais não aprendeu a brincar.

2.Para muitos pais que se sentiram abandonados, quando crianças, em nenhum dia é fim-de-semana. Como raramente se sentiram a primeira das prioridades dos seus pais imaginam que nunca estarão em primeiro lugar para os seus filhos. Serão estes que se desculpam com a falta de tempo sem repararem que abandonam como foram abandonados, e não brincam com os filhos como não terão tido nenhum dos seus pais a brincar consigo. Crescem num interminável ajuste de contas com o passado como se, todos os dias, tivessem de mostrar, à sociedade, que valem a pena. Por vezes, quando não se sentem adorados imaginam-se detestados; nunca, lealmente, contrariados. Na verdade, tão depressa são pais meigos como adversários irascíveis. Tão depressa amuam como se desmancham.

Sempre que se vive preso ao passado o presente não existe. Quando se cresce em função do futuro, o passado deixa de ser uma rede de histórias carinhosas e a vida transforma-se num nevoeiro denso e desgastante. 
É por isso que quem nunca foi o melhor dos brinquedos para os seus pais (e nunca terá transformado os seus filhos no seu melhor brinquedo) brincará, como tantas vezes acontece, quando for avô. 
Terá vivido preso, para sempre, às suas experiências magoadas e desperdiçado a criança que foi, as crianças que gerou, e o que de saudável uma criança interpelante poderia ter tido dentro de si. Só porque nunca teve quem lhe mostrasse que o melhor dos brinquedos são as pessoas, quando brincam!...

3.Tudo o que fomos liga-se em tudo o que somos. Somos as histórias que nos ajudaram a formatar (mesmo que, algumas delas, permaneçam dolorosas, para sempre). 
Somos os sonhos que construímos, quase sem querer (e que ora assumimos, e pelos quais nos superamos, ora iludimos e denegamos). 
Somos os pequenos projectos de todos os dias. Somos a profissão (que tanto nos galanteia como nos maça). Somos o corpo que mal escutamos. E somos os nossos credos, as diversas opções que fomos tomando (mesmo que não fossem «as nossas») e a sensibilidade que nos traz milhares de pequenos-nada cá para dentro.

Na verdade, a vida é tão plural e tão complexa que, em vez de a gerirmos, deixamo-nos levar por ela. 
É por isso que não é a falta de tempo que impede os pais de serem brincadores. São as suas prioridades. 
E porque muitos não foram o melhor dos brinquedos para os seus pais, são as crianças abandonadas que vivem em si quem os leva a nunca se imaginarem em primeiro lugar para ninguém e a não colocarem, no dia-a-dia dos seus gestos, os filhos como prioridade. Por mais que isso contrarie os seus anseios, são elas quem lhes mostra como o amor tem limites.

Fonte:  paisefilhos.pt

Blue Eyes

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