O poder do Não

As crianças precisam de regras e limites para se sentirem seguras e crescerem saudáveis. Saber dizer “não” nem sempre é fácil e chega a ser extenuante, mas é essencial. Na medida e na hora certa.
Os pais querem o melhor para os seus filhos e desejam, acima de tudo, que sejam felizes. Por vezes, este desejo tão natural choca com a necessidade de lhes dizerem que não. Para alguns pais, esta é uma das facetas da parentalidade mais difíceis de gerir e muitos têm dificuldade em assumi-la com assertividade, coerência e eficácia. Mas dizer que não, tal como dizer que sim, faz parte da função primordial dos pais, por mais que possa parecer doloroso ou até desnecessário. 

“O ‘não’ é como o sal da cozinha: nem de mais, nem de menos”, defende o psicólogo Eduardo Sá, alertando que o perigo, à conta do receio dos pais, “é estarmos a criar crianças insonsas”. E isto é “dramático”. Porque “pais bonzinhos são um bocadinho inimigos de crianças saudáveis, por mais que o façam com toda a boa-fé do mundo”. O “não” é o que torna as crianças num “motor de alta cilindrada, com uma caxa de velocidades à medida, que lhes permite ir dos zero aos 100 num instante”. 

Saber dizer não é “uma das maiores competências que os pais devem ter, tal como o saber dizer sim”, acrescenta o psicólogo Rui Brasil. Esta dicotomia “é um dos fatores mais estruturantes da personalidade da criança, nomeadamente ao nível de comportamento, tal como o bem e o mal estão para os valores éticos e o quente e o frio para os sentidos. Estas permitem que cada um de nós aprenda a autorregular-se, a posicionar-se perante uma situação ou a fazer uma escolha”, explica.

O problema é que, quando se trata de colocar limites, muitas famílias sentem-se desorientadas e não é raro ouvirmos mães e pais a reclamarem das exigências dos seus “pequenos ditadores”. Na verdade, estas dificuldades parentais parecem ser resultado da profunda alteração geracional no que toca à colocação de limites e regras às crianças. Na geração dos nossos avós, a educação dos filhos era feita na vertical, sem que houvesse lugar a que os filhos questionassem a autoridade dos pais. A geração seguinte, cansada de autoritarismo, optou pelo extremo oposto, tornando-se por vezes demasiado permissiva. Pais e filhos passaram a ocupar o mesmo patamar de igualdade. Porém, o que as crianças precisam mesmo é de pais que cumpram a sua função, sem confundir autoridade com autoritarismo.

“Os pais têm que ser pais e não amigos. Têm que impor, ditar, estabelecer regras e limites, definir orientações, apontar estratégias. Não têm que pedir por favor aos meninos que aprendam a ser gente ao longo do seu crescimento: têm que fazer deles gente. Com tantas regras quanto amor”, defende Rui Brasil. Porque, caso contrário, acrescenta Eduardo Sá, as crianças limitam-se a fazer, e muito bem, o seu papel: “Esticam-nos e metem-nos no bolso”. E sem darmos conta, “de principezinhos passamos a ter pequenos ditadores e de pequenos ditadores adolescentes tiranos”. É por isso que os pais devem ter a noção de que “a autoridade faz muito bem à vida democrática” e tem uma função essencial. “Se for sensata, compatibiliza as regras da sociedade com os ritmos e o equipamento de base das crianças e isso é tão bom que faz com que elas ganhem asas e saibam voar”.

Regras bem definidas
Já todos ouvimos que as crianças precisam de regras e limites para crescerem saudáveis e em harmonia consigo próprias e com o mundo que as rodeia. Contudo, para alguns pais parece persistir a ideia de que elas sofrem psicologicamente com isso. “É exatamente o contrário”, adverte o pediatra Paulo Oom. “A criança com regras sente-se mais segura”. Por isso, defende que “para educar corretamente uma criança, temos que a frustrar de vez em quando e isto para alguns pais é quase uma barbaridade”. É claro que isto não significa “frustrar pelo gozo de frustrar ou por maldade ou só para contrariar”. Significa “única e exclusivamente que as crianças têm de ouvir um ‘não’”. E mais importante do que ouvir um “não” “é o que a criança faz a seguir a ouvir um ‘não’: é importante que perceba porque é que ouviu aquele ‘não’ e que alternativas é que tem naquele momento para fazer outras coisas que não impliquem aquilo que ela queria fazer e que os pais não deixaram”. Paulo Oom lembra que uma criança que nunca ouve um “não” é uma criança que “não tem limites e como não está habituada a ter regras vai dar-se mal na escola e mais tarde no emprego”.

O pediatra espanhol Carlos González, conhecido por defender uma educação mais permissiva, também concorda que “existem muitos motivos para os pais dizerem não aos seus filhos”, mas acredita que “não é preciso gritar, nem fazer ameaças”. Acima de tudo, é essencial “dizê-lo com naturalidade, com respeito, sem exageros e, sobretudo, dar o exemplo às crianças”. A questão, considera, é que por vezes os pais passam o dia inteiro a proibir coisas que “não são assim tão importantes (‘Não te sentes assim, senta-te direito’, ‘Não ponhas o dedo no nariz’, ‘Não apanhes isso do chão’, ‘Não passes por dentro da poça’…) e o ‘não’ torna-se música de fundo”. Resultado: “Acabam por não obedecer a nada”. Por isso, defende que o “não” deve ser um recurso bem gerido e que, embora em muitas situações seja irrevogável, há outras em que os pais até podem ceder. “Se dizemos ao nosso filho que não pode brincar com a faca ou que não pode pegar no bebé, é óbvio que não podemos ceder, por muito que ele se zangue, mas há outras situações em que podemos ser mais flexíveis: se ele insiste em jogar durante mais cinco minutos ou se não quer vestir aquela camisola, por que não haveremos de ceder?”, questiona. Até porque “uma pessoa que nunca cede é intransigente e não é esse o exemplo que queremos dar aos nossos filhos”.
Para Mikaela Övén, formadora e coach parental, o problema é que muitas vezes os pais têm dificuldade em exprimir os seus limites. Por várias razões: “Uma das principais é porque não tivemos pessoas a darem o exemplo quando éramos crianças. Ouvimos ‘nãos’ duros e autoritários, ‘nãos’ porque sim, e acredito que muitos pais hoje em dia querem fazer algo diferente, mas não sabem muito bem como”. Para esta defensora da parentalidade consciente, “o importante é a criança poder conhecer os limites das pessoas à sua volta e para isso essas pessoas têm de saber comunicar os seus limites. Em geral, somos bastante maus a comunicar os nossos limites pessoais (principalmente as mulheres) e isso não é um bom exemplo para os nossos filhos”, sublinha. Por isso, defende que “um ‘não’ congruente é um ‘não’ meu, um ‘não’ que digo porque estou a assumir responsabilidade pessoal pelos meus limites, pelos meus valores, e não porque acho que o devo dizer, porque tenho medo do que os outros possam pensar ou porque alguém me disse que deveria dizer que não. Para o meu filho acreditar no meu ‘não’, tenho de ser eu a acreditar nele em primeiro lugar”.

No mesmo sentido, o psicólogo Rui Brasil sugere que os pais se concentrem no seu papel de pais e educadores: “Isso passa por educar com tempo, com paciência, estabelecendo limites e regras de forma consistente e sem contradições, sem nunca deixar de dar colo e mimo”. E para que as coisas funcionem é preciso “incorporar a regra em nós”. Porque “ninguém sabe ou pode educar os seus filhos com maior preparação que os próprios pais”. Mas para isso é preciso que “as regras para educar sejam nossas”, porque se são “do pediatra, do psicólogo, da internet ou da amiga, não estão interiorizadas, são externas e os pais tornam-se pares dos filhos (‘os amigos’) e não a sua figura de referência e de autoridade”. Assim, em primeiro lugar, é fundamental que os pais estabeleçam as suas próprias regras, “com recurso a algumas figuras de confiança e de referência mas, efetivamente, as suas regras”.

Por outro lado, Mikaela Övén sugere que as regras sejam comunicadas numa linguagem pessoal de “eu quero/eu não quero”, para que a criança “fique a conhecer os nossos limites e aprenda a relacionar-se com eles”. É muito mais fácil para a criança “perceber quando digo: ‘Eu não quero que ponhas os pés na mesa, para mim é importante manter o espaço onde comemos limpo e os teus pés estão sujos’, do que quando digo ‘Não se põe os pés na mesa! Tira imediatamente daí’.” Além disso, defende que a comunicação deve ser feita na primeira pessoa (“eu” e não ”a mamã/o papá”) porque “uma linguagem próxima, pessoal e autêntica é feita na primeira pessoa”. Por fim, refere a coach parental, é importante lembrar que a criança tem direito a fazer “luto” do “não”. “Quando uma criança ouve um ‘não’ muitas vezes chora e demonstra desagrado, e isso é natural. Ficar frustrado não é mau. O importante é manter o ‘não’ desde que seja congruente (se não mais vale mudar!) e respeitar a reação da criança sem julgamentos.” E sem esquecer que para a criança respeitar um “não” é fundamental que os ”nãos” dela também sejam respeitados. “O que fazemos muitas vezes quando uma criança não quer dar um beijinho? Pois, desrespeitamos esse limite pessoal, esse ‘não’ da criança e muitas vezes ela é obrigada a dar tal beijinho…”

Mal-educado, reguila ou mimado?
mbora seja frequente rotular as crianças de hoje de mal-educadas e mimadas, é importante distinguir má educação de mimo. “Má educação é algo a combater e a prevenir, já o mimo não só é preciso como é essencial para o crescimento e desenvolvimento afetivo das crianças”, sublinha o psicólogo Rui Brasil, lembrando que “uma criança é alguém que está a estruturar a sua personalidade, a organizar os seus pensamentos, valores e as suas atitudes, e que por isso tenta perceber, interpretar e dominar o ambiente onde se insere”. Neste processo de inclusão no mundo, é natural que “coloque em causa as regras estabelecidas, que negoceie, que lute pela prevalência das suas vontades e desejos, num constante desafio face aos adultos que lhe são próximos”. O problema é que hoje parece não haver lugar para crianças “reguilas ou traquinas”, que acabam por ser, erradamente, catalogadas de “mal-educadas”. “Ser reguila é positivo, assenta na ideia de destemor, de não ter medo de explorar o mundo, de expressar emoções”. Rui Brasil acredita que “devíamos educar mais miúdos reguilas, que sabem ouvir ‘não’, que aprendem a lidar com a frustração, que sabem esperar, que sabem que as suas necessidades e desejos não podem ser todos atendidos”.

Dicas para estabelecer limites
Na incansável tarefa de definir limites, é importante ter em mente aquilo que deve estar na base de todo o processo. O psicólogo Rui Brasil sugere algumas dicas, que ajudam a reter o essencial e permitem aos pais ser mais assertivos.
As regras devem ser consistentes no tempo: uma regra deve ser sempre igual. A consistência ajuda a criança a organizar-se e a criar uma rotina, sem a qual pode entrar em ansiedade por não entender e dominar o seu contexto. As regras podem conter limites e exceções: “Vamos para a cama às 9h, menos ao sábado que podemos ir às 10h”. Assim, a criança já sabe o que é esperado dela. Todos os comportamentos têm consequências: para termos adultos responsáveis e autoconfiantes, precisamos de crianças com regras (e suas consequências) interiorizadas. No processo educativo deve haver espaço para a responsabilização e punição, mas também para a negociação (que promove o sentido crítico) e recompensa.
As regras podem ser positivas: o uso excessivo de uma palavra torna-se uma rotina e não surpreende e, em consequência, perde o seu valor. Se não queremos que o “Não” adquira a natureza de barulho de fundo, por que não colocar as regras pela positiva? “Correr é só no jardim” substitui um “Não corras”; “Porque estás a empurrar o teu irmão?” em vez de “Não empurres o teu irmão”. O questionamento da criança é uma estratégia eficaz, já que a coloca num papel ativo.
O amor é incondicional, os comportamentos é que são condenáveis: o que os pais não gostam é do comportamento que o filho tem em determinada situação e não dos filhos. É essencial que as crianças percebam desde sempre que o amor dos pais é inquestionável e não depende de qualquer atitude ou comportamento que os filhos demonstrem.

Da repreensão à palmada
Os pais que recorrem à palmada “como única forma de educar os seus filhos são pais que estão condenados ao fracasso”, defende o pediatra Paulo Oom. A razão é simples: “Cada vez vão ter que bater mais vezes ou com mais força e, mais do que isso, vão criando e entrando num beco sem saída, que é a adolescência”. Para este especialista, a palmada deve ser sempre o último recurso para terminar um comportamento que não é de todo aceitável e reservado apenas para “situações muito pontuais e muito graves”. Situações que “colocam a saúde ou a vida da criança em risco”. Além disso, sublinha, “a palmada vale mais pelo gesto do que propriamente pela intensidade”. Deve ser um gesto tão raro que a criança “percebe que aquilo que fez foi suficientemente grave para não poder repetir no futuro”. Na opinião de Paulo Oom, a disciplina faz-se “90 por cento pela positiva e 10 por cento pela negativa”. Ou seja, na grande maioria das vezes faz-se “explicando à criança o que esperamos dela e dando-lhe o exemplo, para que ela tendencialmente siga aquilo que os pais ou cuidadores dizem”. Nos restantes casos, “é preciso que os pais digam não, que repreendam, que ponham de castigo”.

Fonte: paisefilhos.pt

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