Cheira a Macau


MACAU É um amor que não é à primeira vista. Nem à segunda. É um amor intenso, que se vai penetrando na pele, entre a humidade e o cheiro a esta terra

Assinalei, no início deste mês, dois anos de residência em Macau. Por coincidência, quando festejava esta data comemorativa, realizava uma viagem de volta, depois de três semanas em Portugal. Achei curioso o matrimónio das datas. Como se quisesse esquecer, mas o mundo a fazer-me lembrar. Sentei-me uma vez mais num banco do avião, que me levou até ao Dubai, a primeira parte da longa viagem que nós – os que estão deste lado - fazemos sempre que queremos olhar os familiares, sentir-lhes o cheiro, o carinho e o sabor doce dos seus abraços.

Há quem opte por escalas maiores ou menores, eu sou fiel a este itinerário. Lisboa – Dubai – Hong Kong – Macau. Sei-o de cor, de olhos fechados, entre o minutos de sono e as passeatas para “esticar os músculos” nos corredores do avião. Para lá, para os braços de quem amo, vou tensa, ansiosa e de sorriso na cara. Para cá, para o braços de quem amo, venho confiante, saudosa e pensativa.

Espanto-me a escrever assim. Há dois anos relataria alguém carregada de lágrimas e profundas tristezas, como o verdadeiro português deve ser, numa viagem demasiado longa até ao outro lado do mundo. Deixar quem amamos faz-nos doer. Mas e quando amamos aqui e lá?

Macau é assim. Um amor que não é à primeira vista. Nem à segunda. É um amor intenso, que se vai penetrando na pele, entre a humidade e o cheiro a esta terra. Perder-me entre linhas a tentar explicar ao que cheira Macau seria sempre um trabalho insuficiente. A verdade é que esta terra tem um cheiro único. Cheira a Macau e só quem por aqui passou saberá o que isso significa.

Há dois anos senti pela primeira vez a falta de ar de quem é novo por aqui. O corpo suava devido às temperaturas altas e à humidade nunca sentida. As ruas estavam cheias, as pessoas usavam guardas-chuvas para se protegerem do sol, bebiam chá quente e os homens puxavam as camisolas para cima, exibindo as barrigas. Viravam-me a cara quando tentava perceber qual o autocarro a apanhar, e sempre que entrava numa loja nunca me diziam boa tarde. Eu, turista, trazia na mão um livro de apontamentos. “Bom dia, tarde, noite”, “Obrigada”, e outras palavras que me pareciam na altura úteis, eram ignoradas. Ninguém percebia aquilo que me esforçava a dizer. Havia quem se risse da minha figura, outros abanam a cabeça em sinal de discórdia e continuavam a sua vida. Fui ignorada, pelo menos senti-me invisível. E esse tornou-se o maior desafio que prometi superar. Consegui. Minto. Vou conseguindo.

Os amores são desafiantes. Macau não podia ser mais. Chego e de forma automática apanho o táxi para casa. Digo olá, o nome da minha rua e já consigo dizer que está calor. O taxista percebe tudo, concorda com o calor e continua um discurso que só ele compreende. Eu sorrio-o e penso: cheguei.

Texto muito bem escrito por Filipa Araújo in Visão.

Fonte: visão.sapo.pt

Blue Eyes

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